Se nos gramados os negros conseguiram cavar seu espaço (e obter protagonismo) no futebol mundial, fora das quatro linhas eles ainda lutam por um lugar ao sol. E não está nada fácil avançar a postos de comando no esporte mais popular do planeta.
Apenas 19 dos 552 principais cargos disponíveis no comando dos times de futebol profissional da Inglaterra são ocupados por negros, segundo um levantamento feito no país e divulgado no início desta semana.No Brasil, em todos os 20 clubes da Série A, só um é comandado por um negro – o Fluminense, com o técnico Cristóvão Borges. Contando as duas principais divisões nacionais (Séries A e B), só 15% dos treinadores são negros – 6 dos 40.
"Se você descer a hierarquia, você vai ver mais negros - massagistas, roupeiros, treinadores de goleiro. Mas treinador, dirigente, são cargos maiores e não querem dar esse espaço aos negros", disse à BBC Brasil o cientista social Marcel Diego Tonini, pesquisador da USP que tem trabalhos de mestrado e doutorado sobre o tema "negros no futebol".
Primeiro negro campeão brasileiro, o técnico Andrade, que comandou o Flamengo na conquista do título nacional em 2009, não teve outra chance em clubes de elite após a passagem pelo time carioca. Para ele, ainda há resistência na hierarquia do futebol porque "não estão preparados pra verem um negro dirigindo um clube."
"A dificuldade é da história do nosso país, ela dificulta as ações de negros para assumirem cargos de grande importância. Acontece nas grandes empresas e acontece no futebol também", contou à BBC Brasil.
Alguns dirigentes brasileiros, no entanto, discordam que a ausência de negros no comando do futebol esteja relacionada a racismo ou preconceito. Paulo Pelaipe, diretor de futebol com passagens por Grêmio e Flamengo, é um deles – no time carioca, ele trabalhou com Jayme de Almeida, técnico negro que comandou a equipe no título da Copa do Brasil em 2013 e foi dispensado de forma polêmica neste ano.
"Eu não vejo assim, não sinto isso. O Jayme (de Almeida), por exemplo, sempre foi muito apoiado pela torcida, é uma pessoa espetacular. A comissão tinha muitos negros, não tinha distinção, e é assim que tem que ser. As pessoas valem pelo seu caráter", disse.
O presidente do Atlético Mineiro, Alexandre Kalil, também negou que haja preconceito contra dirigentes ou técnicos negros. "Não tem técnico negro? Então ligue para a (presidente) Dilma e mande ela fazer uma cota pra técnico negro", ironizou. "Eu sou um árabe, não sou um negro, mas também sou discriminado (na sociedade). Não acho que exista nenhum preconceito (no futebol)", disse.
Leia mais: Racismo no futebol: Brasil debate penas, Itália indica caminho contrário
Dificuldades
Andrade saiu do Flamengo em abril de 2010 após ter vivido o auge da carreira na Gávea, com um título improvável do Brasileiro de 2009, um dos mais disputados da história do formato de pontos corridos.Mesmo em alta – foi considerado o melhor técnico brasileiro naquele ano -, ele passou cinco meses sem clube, depois teve curtas passagens por Brasiliense (2010), Paysandu (2011), Boavista (2012) e São João da Barra (2014) – esse último da segunda divisão do Campeonato Carioca. Hoje, está desempregado.
"Claro que eu gostaria de ter oportunidade em um grande clube, mas tem que administrar isso na cabeça. Por razões que eu desconheço, a oportunidade não aparece", lamenta.
"Acho que tem também preconceito, mas isso já vem de anos, essa coisa do negro não ser diretor, treinador, não é de agora. Com o tempo essa história pode mudar, mas não vai mudar da noite pro dia."
Andrade conta que, no Flamengo, "sentiu o preconceito de uma forma enrustida, às vezes, com algum tipo de comentário maldoso dentro do clube mesmo", mas nunca de maneira explícita.
Já Lula Pereira, ex-jogador que atuou como técnico em clubes como Ceará, Bahia e Flamengo, afirmou à revista Placar no ano passado já ter sofrido na pele a discriminação. "Já ouvi de empresários: 'O pessoal do clube gostou do seu perfil, mas, me desculpe, você é preto'."
Para o pesquisador Tonini, o que há no futebol é reflexo do mesmo racismo que está intrínseco à sociedade.
"Envolve algo muito além do futebol, uma questão cultural de que os negros não seriam capazes de coordenar uma equipe, de que eles não poderiam dar ordens a outras pessoas, incluindo brancos."
"No futebol, isso é institucionalizado pelos dirigentes que comandam o futebol, que não permitem de alguma maneira o acesso desses cargos a essas pessoas."
Leia mais: No ano da Copa, racismo é mais um 'fantasma' no futebol brasileiro
Europa
Não é só no Brasil que os negros têm pouco espaço nos cargos mais altos do futebol. Na Itália, por exemplo, o holandês Clarence Seedorf foi ídolo do Milan como jogador e se aposentou dos gramados para assumir o comando do time no ano passado, mas não teve muito tempo para mostrar trabalho – após cinco meses e 22 jogos, ele acabou demitido."É triste ver que são pouquíssimos treinadores negros. Dos ex-jogadores de cor, quantos viraram treinadores? É bem verdade que não devemos ver somente a cor da pele. Mas isso também é um aspecto", disse o holandês em uma conferência da Uefa, em setembro.
Brasil