Crônicas de Nelson Rodrigues




Nelson Rodrigues foi um dos grandes nomes da crônica futebolística brasileira. Era irmão de Mário Filho, quem fundou a crônica esportiva moderna no Brasil. Torcedor fanático do Fluminense, escreveu dos anos 1940 até 1980, ano em que morreu. Era pernambucano, mas durante toda sua carreira morou no Rio de Janeiro. Trabalhou no Jornal dos Sports e no jornal O Globo, principalmente. Ainda hoje é considerado por muitos o melhor cronista brasileiro de futebol de todos os tempos. NR transportou para as páginas de jornais práticas sociais que eram comuns ao brasileiro da época (e muitas persistem até hoje). Portanto, suas crônicas ajudam a construir e perpetuar uma realidade, de acordo com métodos literários como a fantasia.

Nelson Rodrigues desejava que fugíssemos do padrão europeu do futebol e criássemos a nossa brasilidade. Para ele, isso se traduziria em “toda a magia, toda a beleza, toda a plasticidade, toda a imaginação” do futebol de nosso país, segundo citação do próprio. Quem quisesse, segundo Rodrigues, aproximar-se do futebol como jogado na Europa, faria a apologia do futebol feio: “era como se estivessem apresentando o Corcunda de Notre Dame como um padrão de graça e eugenia” (RODRIGUES, 1993, p. 189). Era uma jornada pela institucionalização da malandragem.

Em uma segunda análise, as crônicas de NR podem ser vistas como antagônicas ao padrão da época, de predominância da lógica, e à nossa cultura contemporânea, voltada ao materialismo e ao pensamento racional. As suas metáforas oscilavam entre o moderno e o tradicional, entre a hierarquia rígida e a carnavalização; seria exatamente essa a brasilidade que Nelson Rodrigues buscava. Como disse Carlos Vogt, “de repente, das esferas arquetípicas dos mitos eternos, caímos na realidade e despencamos no consagrado brasilian way of life, quer dizer, no popular jeitinho brasileiro” (VOGT & WALMAN, 1985, p. 44-45).

Para finalizar, é visível que Nelson Rodrigues procurava retratar os homens como seres sobre-humanos, heroicizando-os e apelando para o sobrenatural. Estes recursos representam a luta contra a coisificação do homem. Nelson era a favor da característica fragmentária que o riso provocava (jeitinho brasileiro) em relação ao sério, ao rígido (padrão europeu). Antes da Copa de 1958, comentou sobre a “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do mundo. Isso em todos os setores e, sobretudo, no futebol” (RODRIGUES, 2002, p. 56). Porém, após a primeira conquista mundial da seleção brasileira, não havia mais um porquê de o povo se sentir assim, como um vira-latas; pelo menos, no futebol. E era esse setor da sociedade que daria esperança às massas.






Complexo de vira-latas

Por Nelson Rodrigues


Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - "O Brasil não vai nem se classificar!". E, aqui, eu pergunto: - não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse "arrancou" como poderia dizer: - "extraiu" de nós o título como se fosse um dente.

E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvidas: - é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, e volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, "não". Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de "complexo de vira-latas". Estou a imaginar o espanto do leitor: - "O que vem a ser isso?". Eu explico.

Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.